O golpe de estado que derrubou o Presidente constitucional
João Goulart, em abril de 1964, continua a despertar
interesse da mídia e agora dos historiadores,
mas alguns fatos relevantes não estão
merecendo a atenção que deveriam. Recentemente,
por exemplo, um fato importante adotado pela Associação
Brasileira de Imprensa (ABI) não teve a repercussão
devida. O Conselho Deliberativo da entidade, por sugestão
da sua Comissão de Direitos Humanos e Liberdade
de Expressão, aprovou, por unanimidade, uma moção
propondo à diretoria da ABI, que, além
de se solidarizar com a família do presidente
deposto em abril de 1964, ingresse também com
uma ação na Justiça contra o governo
dos Estados Unidos pelo apoio prestado aos golpistas
e que provocou graves conseqüências aos jornalistas
brasileiros e ao povo de um modo geral.
A família Goulart, através dos filhos,
João Vicente, Denise Goulart e da viúva
Maria Tereza, ingressou com uma ação na
Justiça depois que o ex-embaixador Lincoln Gordon
reconheceu oficialmente que os Estados Unidos, através
da CIA, ajudaram financeiramente o movimento civil-militar
que culminou com a derrubada do presidente. No entender
do Conselho da ABI, esta confissão não
pode passar em brancas nuvens e recomenda à diretoria
da ABI para que, juntamente com outras entidades, como
a Ordem dos Advogado do Brasil, que siga o mesmo caminho,
ou seja, ingresse na Justiça contra o governo
estadunidense, pois a ação criminosa de
Washington provocou efeitos perniciosos não apenas
à família Goulart como a todo o povo brasileiro,
que merece também reparação por
parte dos Estados Unidos pelo que sofreu durante anos
de ditadura.
No caso dos jornalistas, além de episódios
como o do assassinato de Vladimir Herzog, em outubro
de 1975, os efeitos do golpe de 1964, apoiado oficialmente
pelos Estados Unidos, se fizeram sentir durante alguns
anos através da censura a periódicos,
sobretudo os da imprensa alternativa, que resultou em
prejuízos financeiros até hoje não
contabilizados, mas que se calculados podem alcançar
bilhões de dólares.
Sutileza jurídica
Há uma sutileza jurídica que poderá
interferir na ação e que será decidida
pela Justiça: o apoio aos atos ilícitos
da CIA para patrocinar a derrocada de uma democracia
teria sido um ato de império ou um ato de gestão?
A prevalecer a interpretação de que a
ação teria sido um ato de império,
aprovada oficialmente pelo Executivo e Legislativo estadunidense,
como aconteceu no caso da recente invasão e ocupação
do Iraque, o processo contra os Estados Unidos não
seria acatado pela Justiça brasileira e seria
arquivado. Caso o ato seja aceito como de gestão,
ou seja, de que o apoio financeiro ao golpe de 1964
não teve legitimidade e que o patrocínio
da CIA ao golpe de 64 violou bens jurídicos de
natureza pública como a soberania nacional e
a ordem jurídica interna, a ação
seguirá o seu curso e colocará os Estados
Unidos no banco dos réus. A ação
já teve o voto favorável da relatora e
poderá ser definida a qualquer momento com o
votos de outros ministros do Supremo Tribunal de Justiça.
Daniel Renout da Cunha(1), advogado especialista em
Direito Internacional reforça a tese de ato de
gestão dos Estados Unidos na derrubada de Goulart
ao afirmar que se porventura a Justiça brasileira
entender ao contrário estará admitindo
que Washington cometeu um ato de agressão, conforme
está previsto no artigo XXIV da Carta da Organização
dos Estados Americanos (OEA).
Não há hoje mais dúvidas de que
os golpistas de 64 receberam ajuda dos Estados Unidos,
seja financeira ou através de envio de armamentos
e munição por via área e de uma
frota naval. Até mesmo o programa Fantástico
da Rede Globo, em 19 de novembro de 2006, divulgou matéria
nesse sentido revelando a descoberta de documentos oficiais
estadunidenses sobre o golpe de 64, pelo professor Carlos
Fico, da Faculdade de História da UFRJ.
Custos do apoio a atos contra a democracia e prejudicais
ao povo
A família Goulart está pedindo uma indenização
à Justiça no valor de três bilhões
e 496 milhões de reais, a maior parte por danos
morais e apenas 496 milhões por danos materiais
decorrentes dos prejuízos materiais que João
Goulart sofreu com a perda de duas fazendas de sua propriedade,
além de milhares de cabeças de gado. Estes
valores só foram estabelecidos por exigência
do juiz que cuida do caso, pois a ação,
como explicou João Vicente Goulart tem por objetivo
principal recuperar a imagem do presidente constitucional
deposto, além de investigar “a imoralidade
que esse indivíduo, Lincoln Gordon, reconheceu”.
No caso da moção aprovada no Conselho
da ABI, se a diretoria levar adiante a decisão,
como a Justiça pedirá também que
seja informado o valor dos prejuízos acarretados
com o golpe de Estado ao povo brasileiro, o cálculo
a ser estabelecido, em princípio, pode se basear
nos gastos que o Tesouro brasileiro está tendo
com o pagamento de indenizações às
vítimas da ditadura de 64, estipuladas, seja
pela Comissão de Anistia do Ministério
da Justiça ou pela comissão que decidiu
ressarcir familiares de desaparecidos políticos
no período de vigência da ditadura no Brasil.
Se a Justiça brasileira não decidir levar
adiante a ação contra o governo dos Estados
Unidos, a moção aprovada pelo Conselho
da ABI recomenda que a diretoria da entidade, da mesma
forma que a família de João Goulart, leve
a ação para decisão de organismos
internacionais como o Tribunal de Haia.
O caso deveria merecer a máxima atenção
dos veículos de comunicação, pois
tendo desfecho favorávej da Justiça brasileira
ou mesmo do Tribunal de Haia, a ação abrirá
um precedente também para outras famílias
de presidentes ou entidades representativas de povos
que foram vítimas de golpes de estados que contaram
com o apoio dos Estados Unidos, como atos de gestão.
Sukharno, na Indonésia, Salvador Allende, no
Chile, Jacob Arbens, na Guatemala, Isabel Perón,
na Argentina, são alguns dos golpes que, como
o do Brasil em 1964, tiveram o apoio estadunidense,
segundo revelam os documentos de arquivos de organismos
do Estado norte-americano tornados públicos 30
anos depois dos fatos ocorrerem.
(1) Intervenção americana: Ato de Gestão
ou ato de Império? – Revista Justiça
& Cidadania, p.38, julho de 2007