Tropa de elite: a criminalização da pobreza!
"Homem de preto.
Qual é sua missão?.
É invadir favela.
E deixar corpo no chão".
(refrão do Bope)
Por Ivan Pinheiro
Não dá cair no papo furado de que “Tropa
de Elite” é “arte pura” ou
“obra aberta”. Um filme sobre questões
sociais não podia ser neutro. Trata-se de uma
obra de arte objetivamente ideológica, de caráter
fascista, que serve à criminalização
e ao extermínio da pobreza. É possível
até que os diretores subjetivamente não
quisessem este resultado, mas apenas ganhar dinheiro,
prestígio e, quem sabe, um Oscar. Vão
jurar o resto da vida que não são de direita.
Aliás, você conhece alguém no Brasil,
ainda mais na área cultural, que se diga de direita?
Como acredito mais em conspirações do
que no acaso, não descarto a hipótese
de o filme ter sido encomendado por setores conservadores.
Estou curioso para saber quais foram os mecenas desta
caríssima produção, que certamente
foi financiada por incentivos fiscais.
O filme tem objetivos diferentes, para públicos
diferentes. Para os proletários das comunidades
carentes, o objetivo é botar mais medo ainda
na “caveira” (o Bope, os “homens de
preto”). O vazamento escancarado das cópias
piratas talvez seja, além de uma estratégia
de marketing, parte de uma campanha ideológica.
A pirataria é a única maneira de o filme
ser visto pelos que não podem pagar os caros
ingressos dos cinemas. Aliás, que cinemas? Não
existe mais um cinema nos subúrbios, a não
ser em shopping, que não é lugar de pobre
freqüentar, até porque se sente excluído
e discriminado.
No filme, os “caveiras” são invencíveis
e imortais. O único que morre é porque
“deu mole”. Cometeu o erro de ir ao morro
à paisana, para levar óculos para um menino
pobre, em nome de um colega de tropa que estava identificado
na área como policial. Resumo: foi fazer uma
boa ação e acabou assassinado pelos bandidos.
Para as classes médias e altas, o objetivo do
filme é conquistar mais simpatia para o Bope,
na luta dos “de cima”, que moram embaixo,
contra os “de baixo”, que moram encima.
Os “homens de preto” são glamourizados,
como abnegados e incorruptíveis. Apesar de bem
intencionados e preocupados socialmente, são
obrigados a torturar e assassinar a sangue frio, em
“nosso nome”. Para servir à “nossa
sociedade”, sacrificam a família, a saúde
e os estudos. Nós lhes devemos tudo isso! Portanto,
precisam ser impunes. Você já viu algum
“caveira” ser processado e julgado por tortura
ou assassinato? “Caveira” não tem
nome, a não ser no filme. A “Caveira”
é uma instituição, impessoal, quase
secreta.
Há várias cenas para justificar a tortura
como “um mal necessário”. Em ambas,
o resultado é positivo para os torturadores,
ou seja, os torturados não resistem e “cagüetam”
os procurados, que são pegos e mortos, com requintes
de crueldade. Fica outra mensagem: sem aquelas torturas,
o resultado era impossível.
Tudo é feito para nos sentirmos numa verdadeira
guerra, do bem contra o mal. É impossível
não nos remetermos ao Iraque ou à Palestina:
na guerra, quase tudo é permitido. À certa
altura, afirma o narrador, orgulhoso : “nem no
exército de Israel há soldados iguais
aos do Bope”.
Para quem mora no Rio, é ridículo levar
a sério as cenas em que os “rangers”
sobem os morros, saindo do nada, se esgueirando pelas
encostas e ruelas, sem que sejam percebidos pelos olheiros
e fogueteiros das gangues do varejo de drogas! Esta
manipulação cumpre o papel de torná-los
ainda mais invencíveis e, ao mesmo tempo, de
esconder o estigmatizado “Caveirão”,
dentro do qual, na vida real, eles sobem o morro, blindados.
O “Caveirão”, a maior marca do Bope,
não aparece no filme: os heróis não
podem parecer covardes!
O filme procura desqualificar a polêmica ideológica
com a esquerda, que responsabiliza as injustiças
sociais como causa principal da violência e marginalidade.
Para ridicularizar a defesa dos direitos humanos e escamotear
a denúncia do capitalismo, os antagonistas da
truculência policial são estudantes da
PUC, “despojados de boutique”, que se dão
a alguns luxos, por não terem ainda chegado à
maioridade burguesa.
Os protestos contra a violência retratados no
filme são performances no estilo “viva
rico”, em que a burguesia e a pequena-burguesia
vão para a orla pedir paz, como se fosse possível
acabar com a violência com velas e roupas brancas,
ou seja, como se tratasse de um problema moral ou cultural
e não social.
A burguesia passa incólume pelo filme, a não
ser pela caricatura de seus filhos que, na Faculdade,
fumam um baseado e discutem Foucault. Um personagem
chamado “Baiano” (sutil preconceito) é
a personificação do tráfico de
drogas e de armas, como se não passasse de um
desses meninos pobres, apenas mais espertos que os outros,
que se fazem “Chefe do Morro” e que não
chegam aos trinta anos de idade, simples varejistas
de drogas e armas, produtos dos mais rentáveis
do capitalismo contemporâneo. Nenhuma menção
a como as drogas e armas chegam às comunidades,
distribuídas pelos grandes traficantes capitalistas,
sempre impunes, longe das balas achadas e perdidas.
E ainda responsabilizam os consumidores pela existência
do tráfico de drogas, como se o sistema não
tivesse nada a ver com isso!
O Estado burguês também passa incólume
pelo filme. Nenhuma alusão à ausência
do Estado nas comunidades carentes, principal causa
do domínio do banditismo. Nenhuma denúncia
de que lá falta tudo que sobra nos bairros ricos.
No filme, corrupção é um soldado
da PM tomar um chope de graça, para dar segurança
a um bar. Aliás, o filme arrasa impiedosamente
os policiais “não caveiras”, generalizando-os
como corruptos e covardes, principalmente os que ficam
multando nossos carros e tolhendo nossas pequenas transgressões,
ao invés de subirem o morro para matar bandido.
A grande sacada do filme é que o personagem ideológico
principal não é o artista principal. Este,
branco, é o que mais mata. Ironicamente, chama-se
Nascimento. É um tipo patológico, messiânico,
sanguinário, que manda um colega matar enquanto
fala ao celular com a mulher sobre o nascimento do filho.
Mas para fazer a cabeça de todos os públicos,
tanto os “de cima” como os “de baixo”,
o grande e verdadeiro herói da trama surge no
final: Thiago, um jovem negro, pacato, criado numa comunidade
pobre, que foi trabalhar na PM para custear seus estudos
de Direito, louco para largar aquela vida e ser advogado.
Como PM, foi um peixe fora d'água: incorruptível,
respeitava as leis e os cidadãos. Generoso, foi
ele quem comprou os óculos para dar para o menino
míope. Sua entrada no BOPE não foi por
vocação, mas por acaso.
Para ficar claro que não há solução
fora da repressão e do extermínio e que
não adianta criticar nem fazer passeata, pois
“guerra é guerra”, nosso novo herói
se transforma no mais cruel dos “caveiras”
da tropa da elite, a ponto de dar o tiro de misericórdia
no varejista “Baiano”, depois que este foi
torturado, dominado e imobilizado. Para não parecer
uma guerra de brancos ricos contra negros pobres, mas
do bem contra o mal, o nosso herói é um
“caveira” negro, que mata um bandido “baiano”,
de sua própria classe, num ritual macabro para
sinalizar uma possibilidade de “mobilidade social”,
para usar uma expressão cretina dos entusiastas
das “políticas compensatórias”.
A fascistização é um fenômeno
que vem sendo impulsionado pelo imperialismo em escala
mundial. A pretexto da luta contra o terrorismo, criminalizam-se
governos, líderes, povos, países, religiões,
raças, culturas, ideologias, camadas sociais.
Em qualquer país em que “Tropa de Elite”
passar, principalmente nos Estados Unidos e na Europa,
o filme estará contribuindo para que a sociedade
se torne mais fascista e mais intolerante com os negros,
os imigrantes de países periféricos e
delinqüentes de baixa renda.
No Brasil, a mídia burguesa há muito tempo
trabalha a idéia de que estamos numa verdadeira
guerra, fazendo sutilmente a apologia da repressão.
Sentimos isso de perto. Quantas vezes já vimos
pessoas nas ruas querendo linchar um ladrão amador,
pego roubando alguma coisa de alguém? Quantas
vezes ouvimos, até de trabalhadores, que “bandido
tem que morrer”?
Se não reagirmos, daqui a pouco a classe média
vai para as ruas pedir mais Bope e menos direitos humanos
e, de novo, fazer o jogo da burguesia, que quer exterminar
os pobres, que só criam problemas e ainda por
cima não contam na sociedade de consumo. Daqui
a pouco, as milícias particulares vão
se espalhar pelo país, inspiradas nos heróicos
“homens de preto”, num perigoso processo
de privatização da segurança pública
e da justiça. Não nos esqueçamos
do modelo da “matriz”: hoje, os mais sanguinários
soldados americanos no Iraque são mercenários
recrutados por empresas particulares de segurança,
não sujeitos a regulamentos e códigos
militares.
Parafraseando Bertolt Brecht, depois vai sobrar para
nós, que teimamos em lutar contra o fascismo
e a barbárie, sonhando com um mundo justo e fraterno.
A trilha sonora do filme já avisou:
“Tropa de Elite,
Osso duro de roer,
Pega um, pega geral.
Também vai pegar você!”
Ivan Pinheiro é Secretário Geral do Partido Comunista Brasileiro (PCB)
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