Uma reflexão sobre a culinária típica carioca
Por Cristiane Turon
Não tenho preconceitos, me encanto com a gastronomia
do mundo inteiro. Mas a brasileira tem um lugar especial
no meu coração, já que é
rica em ingredientes e em técnicas (apesar de
pouca gente saber disso). O que é a preparação
do tucupi, por exemplo, desenvolvida pelos índios
em tempos idos, em que o sumo da mandioca brava é
fervido durante dias para perder o seu poder venenoso
e se tornar o néctar que é?
Mas hoje, gostaria de falar um pouco sobre a culinária
carioca. Existe uma culinária típica carioca?
Pois bem, vamos refletir. Como o Rio de Janeiro sempre
esteve no centro da vida política e cultural
do Brasil, é natural que a nossa culinária
sofresse influências tanto do exterior como de
outros estados do Brasil. Além disso, cabe lembrar
a natureza acolhedora do carioca, o que possibilitou
um verdadeiro caldeirão de culturas, literalmente.
Para início de conversa, a culinária portuguesa
por aqui fez seguidores. O bacalhau está em quase
todos os restaurantes e freqüenta a mesa dos cariocas
em datas festivas como o Natal e a Páscoa, e
só não está mais presente em virtude
do seu preço salgado (me desculpem o trocadilho).
Da mesma forma, o cozido se tornou verdadeira tradição,
havendo competições entre restaurantes
sobre a melhor preparação. Não
podemos esquecer do caldo verde, das iscas de fígado,
das sardinhas fritas ou na brasa, do bolinho de bacalhau
(adaptação das pataniscas portuguesas
que não levam batata) e dos doces conventuais,
como o pastel de santa clara e o toucinho do céu.
O carioca, além disso, gosta de freqüentar
bares e restaurantes, onde come bem e joga conversa
fora, inclusive com desconhecidos. Daí a nossa
famosa comida de botequim, intitulada por alguns como
baixa gastronomia carioca. A mim não agrada o
título, porque não sou adepta da classificação
entre baixa ou alta gastronomia. A boa comida é
sempre alta gastronomia seja ela um excepcional foie
gras ou um igualmente excepcional bife com fritas. Aliás,
o bife é o prato que mais freqüenta a mesa
dos brasileiros, é imbatível.
Desse gosto por bares e restaurantes, nasceram alguns
pratos que podemos dizer típicos. O cabrito com
arroz de brócolis e alho torradinho nasceu no
restaurante lapiano Nova Capela, quem conhece sabe o
que não está perdendo. O escondidinho,
cria da Academia da Cachaça agrada a gregos e
troianos e é copiado amplamente. A sopa Leão
Veloso, acredita-se, foi preparada inicialmente no restaurante
Rio Minho, e é uma versão carioca da sopa
francesa de frutos do mar, a bouilabaisse. O camarão
com chuchu é servido da mesma forma há
anos no Penafiel. Os pesquisadores também indicam
com freqüência o picadinho carioca, prato
que fez muito sucesso no saudoso Mistura Fina, e ainda
faz na rede de restaurantes Gula Gula. E o filé
à Oswaldo Aranha começou a ser servido
no Cosmopolita a pedido do próprio, que gostava
do filé alto, mal passado, coberto com alho torradinho
acompanhado de arroz, farofa e batata portuguesa. Nos
dias atuais, o do Café Lamas leva vantagem, e
também brilha com o filé à francesa,
servido com guarnição que leva batata
palha, petit pois (e ai de quem falar ervilha), cebola
e presunto. O Cosmopolita teve outros ilustres freqüentadores
como Pixinguinha e Donga.
E já que citei esses magníficos chorão
e sambista, respectivamente, vale lembrar das feijoadas
da Tia Surica, integrante da Velha Guarda da Portela
e da Romana, fiel escudeira do sambista imperiano Milanês.
O casamento perfeito entre samba e feijoada só
poderia ser mesmo carioca. A feijoada é um capítulo
à parte e merece um artigo somente para ela,
mas já posso adiantar que existe uma disputa
entre cariocas e paulistas pela sua naturalidade.
Continuando pelos bares e botequins da cidade, encontramos
com facilidade o sanduíche de carne assada ou
de pernil, servidos de forma magistral no Cervantes
(de Copacabana, por favor), onde Ary Barroso se deliciava
com a galinha frita, dispensando os talheres. A empada,
que pode ser saboreada em inúmeros estabelecimentos,
de camarão, de carne seca, de frango, etc. O
mocotó, a rabada com agrião e... a farofa
de ovos! Me digam, com sinceridade, se vocês comeram
em qualquer lugar do Brasil uma farofa tão molhadinha
como a daqui? Sem falar do pastel frito, de preferência
degustado em alguma feira livre acompanhado de um caldo
de cana bem geladinho.
O Rio também é famoso pelas suas casas
de sucos, de todos os sabores imagináveis e com
combinações inusitadas e deliciosas.
O galeto e o churrasco não poderiam ficar de
fora. Ambos acompanhados de um bom chope, claro. Aqui
vai uma dica: o Uruguaio que fica numa barraca na areia
do posto nove em Ipanema, faz um sanduíche de
carne e cebola feitas na brasa maravilhoso, acompanhado
de um chimichurri que eu nunca provei igual, nem na
Argentina e nem no Uruguai. O segredo eu já tentei
arrancar, mas não consegui, é guardado
a sete chaves.
E então, alguma dúvida da existência
da culinária típica da Cidade Maravilhosa?
Cristiane Turon é tecnóloga em Gastronomia
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