O STF e a ilusão da "Justiça Suprema"
Por Sérgio Batalha
A apreciação no Supremo Tribunal Federal
da denúncia apresentada pelo Procurador-Geral
da República contra os envolvidos no inquérito
do “mensalão” provocou uma onda de
euforia na imprensa. A aceitação da denúncia
contra os 40 indiciados conferiu uma chancela aparentemente
técnica às acusações da
oposição e da própria imprensa
contra os envolvidos no escândalo, legitimando
as conclusões da CPI e estigmatizando o PT como
um partido envolvido no “maior escândalo
de corrupção da república”.
Também a recente decisão declarando que
os mandatos eletivos pertencem aos partidos e não
aos parlamentares, foi saudada pela imprensa como “o
início da reforma política”, sendo
que alguns chegaram a declarar que o STF fez a reforma
que o Congresso “não teve a coragem de
fazer”.
Porém, toda esta euforia encobre uma mistificação
evidente. O STF é um tribunal essencialmente
político, formado com base em indicações
diretas do Presidente da República de cidadãos
que não precisam ser juizes de ofício,
mas apenas bacharéis em direito com “notório
saber jurídico”. Tal conceito é
tão genérico quanto maleável, servindo
na prática para a indicação de
qualquer nome de jurista ligado ao Presidente ou a ele
indicado por uma força política.
Assim, o STF “independente e técnico”,
cantado em prosa e verso pela imprensa após a
aceitação da denúncia contra os
envolvidos no inquérito do “mensalão”,
é o mesmo tribunal que absolveu o ex-Presidente
Collor e deixou impunes até hoje todos os políticos
acusados de crimes comuns e políticos. É
o mesmo tribunal que aceitou o desvirtuamento das medidas
provisórias, manietando o Congresso Nacional,
e que permite a farra do calote nos precatórios,
negando-se a intervir nos estados nos quais os governadores
não pagam as dívidas resultantes de processos
judiciais.
Logo, é uma bobagem tentar analisar a recente
decisão do STF sob uma ótica puramente
técnica, como se ele fosse um tribunal imune
às influências da política. Trata-se
de uma ilusão popular entre os cidadãos
que não têm o direito como instrumento
de trabalho. Porém, qualquer advogado de ofício
sabe que existe uma abissal diferença entre o
julgamento de um processo comum, que não envolve
somas milionárias ou pessoas poderosas, e um
julgamento como este do “mensalão”.
Neste tipo de processo o “urubu voa de costas”,
decisões são proferidas em arrepio à
técnica e prevalecem essencialmente as forças
da política, ou mesmo a força do capital.
É claro que a pesada marcação da
mídia sobre os ministros do STF acabou por criar
um clima insustentável para a exclusão
de qualquer dos indiciados no inquérito. Como
disse sinceramente o Ministro Lewandowski: “O
Supremo votou com a faca no pescoço”. Basta
recordar que antes da prolação dos votos
havia uma evidente tensão nas matérias
jornalísticas com a possibilidade da absolvição
dos envolvidos, especialmente daqueles ligados ao PT.
Foram divulgados comentários de que o Presidente
Lula havia nomeado boa parte dos Ministros, insinuando
uma possibilidade de favorecimento, e enfatizados os
termos da denúncia do Procurador-Geral, que foram
apresentados como a pura expressão da verdade.
Nada se disse sobre o fato de que grande parte da denúncia
ser composta de ilações e suposições,
sem nenhuma prova conclusiva, especialmente em relação
a alguns dos troféus mais cobiçados, como
José Dirceu e Genoíno.
Quando o julgamento se iniciou, a mídia rompeu
todas as fronteiras do respeito em relação
ao STF, utilizando métodos inéditos como
fotografias de telas dos “laptops” dos Ministros
e gravações de suas conversas privadas
em restaurantes. O efeito foi evidente. Os Ministros
temeram a execração pública a que
seriam expostos no caso de absolvição
de qualquer um dos indiciados, revertendo uma tendência
já confessada pelo próprio Lewandowski
de “amaciar para o Dirceu”.
O Ministro Eros Grau se tivesse votado em favor de Dirceu
seria acusado de trocar seu voto pela nomeação
de Carlos Alberto Direito, como insinuado nos e-mails
trocados entre Lewandowski e Carmen Lúcia. Aires
de Brito viu-se constrangido a fazer inclusive um discurso
veemente contra Dirceu, sob pena de recordar-se seu
passado de filiado ao PT. E por aí vai.
No caso dos parlamentares que trocaram de legenda durante
o mandato, a imprensa tratou também de execrá-los,
chamando-os de traidores para baixo e utilizando alguns
exemplos lamentáveis para forjar um “sentimento”
da opinião pública no sentido da cassação
dos mandatos dos “infiéis”, que,
não por acaso, integram na sua esmagadora maioria
a base de apoio do governo.
Hoje a mídia comemora tais julgamentos como uma
“nova era” na vida pública brasileira,
na qual foi enterrada a cultura de impunidade e fisiologismo
dos nossos políticos. Será mesmo? Ou será
que esta “nova era” será a da “judicialização”
da nossa política, com o Judiciário servindo
como braço dos interesses dominantes e corrigindo
os resultados “indesejáveis” do voto
popular?
O povo elegeu Lula de novo? Votou no PT? Não
tem problema, conseguimos um escândalo para divulgar
e, partir dele, começamos um processo de cassações,
transformando indícios e presunções
em provas. Isto já está ocorrendo com
Renan Calheiros, que está sendo queimado na fogueira
por crimes que levariam para cadeia junto com ele 90%
do Senado da República.
Lembre-se que, originalmente, ele foi acusado de pagar
pensão alimentícia com dinheiro de uma
empreiteira. Isto não foi provado? Não
tem problema, agora ele é quem tem de justificar
todo o seu patrimônio, seus ganhos e gastos nos
últimos anos. Imaginem qual senador resistiria
a uma quebra de sigilo fiscal e a tal obrigação?
Alguns dirão: “Isto é saudável.
É a moralização da política.”
Mas será que ela virá para todos? Onde
está o indiciamento do Senador Eduardo Azeredo?
E Paulo Maluf, até hoje debochando da Justiça?
E Antônio Carlos Magalhães, que morreu
como “grande benemérito da Bahia”,
ao invés de ser crucificado como ladrão
de seu estado?
Não se trata simplesmente do julgamento de práticas
fisiológicas adotadas por dirigentes do PT, que
certamente têm a reprovação da esquerda,
mas dos riscos de adotar-se uma espécie de “populismo
judiciário”, manipulado pela mídia,
que acabe por contaminar nossa democracia. Não
custa lembrar que José Dirceu, independentemente
de seus méritos ou deméritos, foi eleito
com meio milhão de votos e cassado sem uma prova
conclusiva sequer.
Também quanto à chamada “infidelidade
partidária”, nada se falou sobre a falta
de consistência ideológica dos partidos
políticos brasileiros, inclusive do PT, que mudam
de posição sobre temas fundamentais para
o país sem fazer qualquer consulta às
bases ou mesmo respeitar as instâncias partidárias.
É evidente que tal inconsistência justifica
muitas vezes a troca de legenda, bem como que o eleitor
brasileiro, em sua esmagadora maioria, vota nas pessoas
e não nos partidos. Ah, isto é errado?
Sim, como muitas outras coisas em nosso país
e nem por isto o STF tem a legitimidade para “consertar”
o Brasil, sobrepondo-se ao Congresso Nacional e à
própria cultura política do eleitor, que
tem sua própria idéia do que é
votar bem ou mal.
O casuísmo da decisão no caso do STF é
perigoso, pois como ressaltou um dos votos divergentes,
o do Ministro Eros Grau, os casos de perda de mandato
parlamentar estão expressos na Constituição
da República (mais precisamente no artigo 55)
e entre eles não se inclui a mudança de
legenda durante o mandato.
É também contraditória a justificativa
técnica da “interpretação
criativa” da Constituição que teria
sido praticada pelo Supremo, invocando-se inclusive
o exemplo da Corte Constitucional Alemã, em um
país de cultura jurídica e jurisprudência
majoritariamente positivista, ou seja, que privilegia
a interpretação literal e restritiva dos
textos de Lei.
Não preciso acrescentar que a “interpretação
criativa” do Supremo surgiu quando ela interessou
a setores da mídia e do capital, mantendo-se
o STF na sua habitual interpretação “literal”
quando se tratam de outros temas antipáticos
a estes setores, como privatizações, sistema
financeiro e etc.
Igualmente absurda a justificativa para o tratamento
diferenciado aos Senadores e Governadores, protegidos
pelo casuísmo de que sua eleição
não se dá pela legenda e sim por força
da disputa individual contra outros candidatos, mostrando
que há sempre um “jeitinho” para
acomodar a suposta técnica aos interesses políticos
ocultos por trás da toga.
Há hoje no Brasil uma tendência de supervalorização
do STF como instância decisória na vida
nacional, em detrimento dos Poderes Executivo e Legislativo,
sob o argumento de que lá as decisões
seriam técnicas e não estariam sujeitas
a influência da política e da corrupção
que a acompanha.
É uma ilusão perigosa para a democracia
brasileira, pois, como diz nossa Constituição,
“todo poder emana do povo, que o exerce por meio
de representantes eleitos ou diretamente, nos termos
desta Constituição” (parágrafo
único do artigo 1º). Não me lembro
de eleito nenhum dos Ministros do Supremo, muito menos
de ter-lhes assinado um cheque em branco para reinventar
todas as instituições políticas
brasileiras.
Logo, não podemos nos deixar levar por uma ou
outra conseqüência positiva desta nova postura
do STF e distinguir as pessoas por elas prejudicadas
com os princípios maiores que estão sendo
violentados. É hora de a esquerda refletir sobre
a famosa passagem literária citada na obra de
Ernest Hemingway: “A morte de qualquer homem me
diminui porque estou envolvido com a humanidade. Por
isso nunca pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram
por ti”.
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