O bairro da Lapa (Rio de Janeiro) sofreu uma intervenção,
nos últimos cinco anos, baseada nos modelos de
revitalização de centros urbanos europeus,
que consistem na renovação dos equipamentos
urbanos existentes, na definição de uma
política de preservação do patrimônio
arquitetônico e artístico, com o objetivo
de estimular a volta de investidores a locais deteriorados.
No caso do bairro boêmio, a revitalização
criou condições para ampliar um processo
cultural que já se manifestava na existência
de rodas de samba pelas ruas do bairro, comandadas por
novos e velhas sambistas, em botecos, espaços
mais democráticos e abertos aos sambas do que
as casas de shows dos bairros mais nobres. A intervenção
no bairro veio como resposta, à mobilização
de público que já existia, em que pesassem
as péssimas condições do local.
Esse fenômeno (ocupação do espaço
público por sambistas) nunca esteve ligado a
políticas culturais ou urbanísticas, de
qualquer governo. Antes, é uma resposta estética
à música veiculada nos meios de comunicação
de massa, comercializada e apresentada nas grandes e
caras casas de espetáculos, em cuja programação
não cabem jovens artistas, tampouco representantes
de tradicionais da música popular brasileira.
É, essencialmente, a manifestação
artística ocupando espaços abandonados,
de modo subversivo e recorrente para expor a arte à
fruição, aquém das regras de mercado.
A característica mais perceptível foi
a forte ligação entre os novos compositores,
músicos e admiradores de samba e os tradicionais
representantes do ritmo – alijados do mercado
fonográfico –, marcada pela fidelidade
ao samba tradicional, seja pelo estreito vínculo
teórico com a música produzida no passado,
seja pelo contato contínuo com a memória
daqueles ainda vivos, como demonstram trabalhos de grupos
que surgiram nesses espaços.
O Galocantô é um desses grupos, formado
por jovens músicos que se apresentavam nos botecos
da Lapa, e que, pelo esforço e obstinação,
lançou seu primeiro disco, Fina Batucada.
Com toda a aparente simplicidade das letras, é
um dos mais significativos discos produzidos por sua
geração. Em primeiro lugar pela audácia
de fazer constar onze composições próprias
dentre as dezoito faixas do disco, representando a concepção
estética do grupo quanto à forma com que
o samba deve se renovar: uma discussão recorrente
que quando bem desenvolvida chega à segunda justificativa
desse trabalho.
Em segundo lugar, miram-se no exemplo de Paulinho da
Viola que, em seu começo de carreira como outros
jovens sambistas da época juntou-se aos velhos
sambistas, na Portela, estabelecendo o paradigma de
suas composições. É o que se depreende
ao ouvir a participação da Velha Guarda
do Império Serrano, que lhes abençoa e
deita suas influências negras, perceptíveis
na percussão do grupo. Como resultado a saudação
Apesar do tempo, evocação típica
do samba demonstra a vibração desse contato
de gerações. Um samba alegre em que o
ritmo prevalece.
Através de arranjos bem feitos, a percussão
ganha tratamento especial e criativo, como raramente
acontece em grupos de roda de samba, com o apoio do
talentoso, mas pouco valorizado e reconhecido, Ivan
Milanez (Velha Guarda do Império Serrano) que
tão bem domina instrumentos de percussão
com ouvido de maestro. Os músicos Edson Cortes,
Léo Costinha, Lula Matos, Pedro Arêas e
Rodrigo Carvalho, seguem o caminho e são responsáveis
por belos momentos das apresentações do
grupo.
Marcelo Correia e Pablo Amaral, violão de 7 cordas
e cavaquinho respectivamente, encarregam-se da harmonia
com tranqüila maturidade, estabelecendo o diálogo
com tanto batuque, destacando-se nos arranjos já
que não surgem como mero complemento, sobressaindo-se
no momento certo, ao lado das vozes de todo o grupo.
Como todo o disco de samba, a presença de alguns
nomes é quase obrigatória, como a de Beth
Carvalho na faixa, Elo da corrente, uma aparente homenagem
a ela própria, que costumeiramente presta apoio
a jovens sambistas incentivando-lhes, completando assim
a corrente necessária para a continuidade do
gênero. O disco conta com outras participações
de compositores como Luis Carlos da Vila, Wilson das
Neves, Toninho Geraes, Arlindo Cruz, Diogo Nogueira,
e de músicos como Nicolas Krassik e do virtuoso
e discreto Ronaldo do Bandolin (Trio Madeira Brasil).
Em meio a tudo isso, Fina Batucada, arremata seu repertório
com a excelente A volta do malandro de Chico Buarque,
merecidamente lembrado como grande sambista que é.
Este samba serve bem ao batuque do Galo, pois sua melodia
pede a sustentação rítmica para
formar a tensão do anúncio e da preparação
da volta do malandro da letra. Uma bela lembrança.
Embora tenha surgido na Lapa, enquanto espaço
de apresentação, a essência desse
grupo não pode ser limitada a um fenômeno
geográfico, pois não é assim que
o samba acontece. A travessia da cidade rumo ao subúrbio,
Madureira é o caso, promoveu a mistura necessária
para garantir um futuro ao samba. Qual o futuro do Galocantô?
Qual o futuro do samba? Considerando o mercado, o futuro
será a produção de discos como
este. Simples, seguro e, acima de tudo, independente.
Assim, timidamente, terão escrito uma pequena
parte da história, prevalecendo o duro compromisso
que o artista tem com a arte: mantê-la viva, pura
e independente, sem morrer de fome.
(*) artigo publicado no jornal Brazilian Press em 16/01/2007
Mais sobre o Galo:
www.galocanto.com