O grito de Shylock
Por Celso Gomes
Recomendamos a leitura da peça O Mercador de
Veneza do bardo Willian Shakespeare, escrita em 1596,
que possui como leitmotiv a usura judaica. A história
em resumo é simples: Bassânio, jovem aristocrata
falido, pede a seu amigo Antônio – o mercador
que dá título à peça –
dinheiro emprestado para conquistar a bela Portia. Antônio,
que possui todos seus bens investidos em mercadorias
que estão para chegar a Veneza, impossibilitado
de entregar a soma pedida, dá-lhe uma carta de
fiança para que seu amigo possa levantar a quantia
pretendida. Com a carta em mãos, o jovem pródigo
pede o empréstimo ao judeu Shylock, que concorda
em concedê-lo com uma garantia: se no prazo a
dívida não for paga, o fiador terá
que ceder uma libra da carne de seu peito. O mercador
concorda com essa absurda condição. Entretanto,
o naufrágio de um dos seus navios acarreta o
inadimplemento da obrigação e ele é
levado pelo credor ao tribunal, onde lhe é exigido
o cumprimento do contrato. O juiz da causa tenta sem
êxito demover o judeu de seu intento e obrigado
a sentenciar, determina que seja retirada a libra de
carne, porém sem que o sangue do réu seja
derramado, pois este não estava pactuado. Em
vista desta decisão o credor desiste desta cláusula
contratual e resolve aceitar o pagamento da dívida
em dinheiro, o que não lhe é mais permitido.
Como sucumbente, o judeu sofre ainda uma condenação
para dividir seu patrimônio entre o réu
e o Estado, bem como para se converter ao cristianismo.
Há aqui vários elementos para o estudo
do Direito com profundas discussões jurídicas,
tais como:
1 - A fiança expunha mais o fiador que o devedor
originário;
2 - Com o inadimplemento da obrigação,
o mercador é preso, ou seja, a prisão
ocorria por dívida, o que não ocorre atualmente
(exceção à dívida de prestação
alimentícia);
3 - O julgador acumula a função jurisdicional
e de acusação;
4 - O juiz aplica a lei de forma alternativa, permitindo
que seja retirada a libra de carne, cumprindo o pacta
sund servanda, porém sem que o sangue seja derramado,
o que impede o cumprimento de cláusula cruel
e denegridora da condição humana;
5 - A sentença é extra petita, pois ultrapassa
os limites originais da lide ao expropriar os bens do
credor e obrigar sua conversão.
Entretanto, há alguns aspectos que devem ser
salientados, pois, do contrário, sobrará
do texto apenas um libelo anti-semita. Shylock, aparentemente,
é uma figura desprezível e odiosa por
praticar a usura, proibida aos cristãos desde
o Concílio de Latrão em 1179. No entanto,
o bardo de Stanford não seria canônico
atualmente se outros elementos não forem analisados.
Em Veneza, os judeus eram confinados em guetos. Aliás,
a origem dessa palavra remonta a esta cidade-estado.
O sofrimento fazia parte do quotidiano do povo de Abraão
com os constantes “pogrons” e humilhações.
Nesse sentido, a exigência absurda ressalta em
Shylock sua dignidade, pois ao seu modo, o que ele exige
incessantemente é Justiça, ou a destruição
do Estado injusto. Já não é mais
a luta do judeu em face de Antônio, que o desgraçou
e humilhou pelo simples fato racial, mas a luta de todo
um povo que clama em desespero, pois como vocifera Shylock
à beira de um dos canais venezianos, dirigindo-se
aos amigos do mercador que lhe pediam clemência:
“Os judeus não têm olhos? Não
têm mãos, dimensões, sentidos, inclinações,
paixões? Não ingerem os mesmos alimentos,
não se ferem com as mesmas armas, não
estão sujeitos às mesmas doenças,
não se curam com os mesmos remédios, não
estão sujeitos ao calor do verão e ao
frio do inverno da mesma forma que os cristãos?”
O desabafo é longo e impressionante. Não
é mais Shylock que grita, é a condição
humana. Passamos a vê-lo não mais como
um ser desprezível, pois em seu momento de dignidade,
sua desesperada queixa, seu enorme sofrimento, ecoam
em nossos ouvidos habituados ao silente murmurar dos
fornos hitleristas. Acuado pela intolerância e
pela prepotência, Shylock grita e seu grito ainda
reverbera quatrocentos anos depois.
Celso Gomes é advogado e escritor
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