Brecht - racionalidade e vulnerabilidade do homem universal
Por Camila Austregésilo
“O Homem Vivo” tem uma construção
de roteiro interessante. Partindo de poesias de Brecht,
o texto foi construído criando perfeitos diálogos
entre as duas personagens que compõem a peça.
A colagem poética, roteirizada e dirigida por
Delson Antunes, é bem conduzida, trazida com
coerência para o contexto do êxodo. O texto
no qual a poesia migra para a prosa teatral serve de
base para a construção da história
de dois emigrantes em busca de oportunidade de trabalho
para garantir a sobrevivência na promissora cidade
de Urga.
Durante o percurso dos migrantes eclodem lembranças
de amores passados, reflexões sobre amizade e
os meios de se levar a vida, sobre a sempre inalcançável
racionalização das ações
humanas, que pretensamente organizaria a vida do sujeito,
lhe trazendo benefícios sociais e aplacando as
dores dos conflitos nos relacionamentos com o outro,
mas, no plano real das ações cotidianas,
não se realiza.
Orã Figueiredo opta por um tom mais irritadiço
e mal-humorado, um pouco agressivo, fundamentado no
teor questionador da dramaturgia brechtiana, mas vai
além da impostação de sua voz,
exagerando na expressão vocal, se atendo ao texto
decorado em detrimento do aprofundamento das intenções
da sua personagem. Isso fica ainda mais evidenciado
pelo contraste com a naturalidade e familiaridade teatral
de Camilla Amado.
A atriz intensifica os momentos de silêncio, as
pausas e interage bem com a fala do colega. Expressão
irretocável nas variações do estado
de sonho e esperança para a tristeza quase derrotista,
apesar da rouquidão e certa debilidade de movimento
que acabam por contribuir com as características
de uma personagem andarilha e cansada.
A falta de maior harmonia entre os atores não
impede o andamento da peça, que é bela
e emociona honestamente. A interação vai
num crescente, mas ocorre em cena.
Nos diálogos entre as personagens sobressaem
as nuances de esperança e desilusão a
respeito do futuro que perseguem em sua trajetória
e, até mesmo, na dúvida sobre as alegrias
do passado. Ficam expostas as agruras do homem vivo,
a vulnerabilidade da condição humana,
a sobrevivência à mercê do que lhe
renda a sazonalidade das estações e sua
própria sorte. Daí se dá a universalidade
e atualidade da peça.
Na crítica do conflito entre se fazer o bem ou
o mal, se destaca a reflexão sobre a dificuldade
em ser mal, representada na descrição
de uma máscara japonesa que tem as veias do rosto
salientes, interpretada como o esforço da maldade,
o que contrasta com o prazer da bondade, da alegria
de dar tal qual a de receber. Referências do inconformismo
questionador de Brecht, apontando para o socorro ao
homem oprimido.
Em algumas passagens as lembranças são
encenadas, como recurso o flashback, ambientado sutilmente
pela iluminação de Luiz Paulo Nenem, e
dela dependem as transições das cenas,
suprindo a quase total ausência de cenário,
num trabalho simples e eficiente.
O figurino de Nello Marrese define a condição
de operário das personagens, avental e roupa
surrada. Camilla Amado, além da trouxa conferida
a ambos, carrega uma bolsa que a salva de certa confusão
referente ao gênero de sua personagem na peça.
Também dele é o cenário, um piso
avermelhado que com eficiência faz a ambientação
da trajetória dos andarilhos.
O piano de Tibor Fitel* acompanhado do tenor Wladimir
Pinheiro tecem a completude do trabalho artístico,
fazendo a trilha sonora da peça com músicas
de Schumann, Brahms, Kurt Weill, Villa Lobos e Charlie
Chaplin, em plano superior que, inicialmente, não
interfere no andamento do espetáculo. Mas é
compartilhado com os atores no segundo (e curto) momento
do espetáculo.
Os atores trocam seus aventais por sobretudos e boinas,
na típica disposição do figurino
associado a Brecht, Orã Figueiredo complementa
com um charuto e a essa altura já está
bastante à vontade no seu papel. A fala é
própria do autor, instigante questionador, inconformado,
crítico observador da dicotomia das classes e
da natureza versus cidade.
*Substituiu João Carlos Assis Brasil no espetáculo
em 6 de outubro.
Camila Austregésilo é jornalista
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