O lirismo do desajuste em três atos
Miri, Chinaski e Noel nos fazem reviver a poética dos inadaptados
Por Gustavo Dumas
Israel, 1974. Numa vila (quase) perfeita, com forte
inspiração socialista, um garoto sai de
madrugada para comprar remédios que matarão
sua mãe, que não quer mais viver. Na América
(do Norte) pós-1929, um outro menino dá
de bancar o mau esfregando seu pão com mortadela
e sua cara enfaixada de tantas espinhas aos olhos cheirosinhos
de seus “companheiros” de classe, causando
estupor e zombaria. Já é de manhã
no Rio de Janeiro da década de 1920 e um jovem
compositor tuberculoso come cerveja e bebe conhaque,
enquanto escreve um samba. E assim vamos: os dias se
sucedem e há pouco a ser feito a não ser
viver à margem da normalidade fabricada por sobre
a idéia brilhante chamada civilização
– haverá, contudo, sempre aqueles cuja
regra diária afeta mas não comanda. Tratamos
aqui de um tipo genuíno de desajustado, a quem
a arte e o álcool costumam fornecer o abrigo
que a rotina e seu caráter mediano negam. Do
contrário, resta uma última opção:
outras drogas que podem até causar prazer –
mas quiçá abram uma porta para um desfecho
antecipado, quando nada mais importa.
Estamos cometendo semelhante loucura, que é falar
de três produtos culturais ao mesmo tempo –
o nosso tempo. Talvez por acreditar que produtos culturais
de diferentes suportes lingüísticos, analisados
para além da sua unidade específica, ganham
outros ângulos que farão com que entendamos
melhor os aspectos interditos de sua concepção.
Talvez porque o enunciador desta nota se identifique
um tanto com os personagens retratados, a ponto tal
de se embeber de seus vícios e tecer um artigo
emboladiço, um texto em trânsito, notas
sem ligadura, música de cantar somente aos dois
dedos da velha caixa de fósforos barulhecente.
Pois bem, é feito, o rumo vamos traçando,
a pinga está cometida ao fígado e não
há volta. Traguemos. “Exuberante deserto”
(Israel/Alemanha/Japão, 2006), de Dror Shaul,
é um filme sobre a vida em uma comunidade, o
kibutz, fundada em princípios igualitários,
em que cada um exerce suas tarefas em prol do coletivo.
As decisões mais comezinhas são tomadas
em assembléias das quais todos participam com
voz e voto. Não há exploração
da força de trabalho e o regime não é
totalitário como quiseram fazer ver algumas resenhas
mal-intencionadas. O que paira acima de qualquer um
é a sobrevivência da comunidade, e nesta,
obviamente, destacam-se alguns poucos líderes,
que por sua vez acabam, de quando em quando, incorrendo,
sim, em pequenos desvios ou abusos de poder, ainda que
respaldados pela maioria. Porém, o poder de polícia
se exerce pelos próprios locais, mormente quando
o status quo coletivo, e não individual –
e é aqui que se trai quem tentou fazer política
barata às custas do filme – encontra-se
sob ameaça.
É nesta sociedade auto-suficiente e centrada
que não se encaixa Miri. Ela vive só com
o filho Dvir, que passa mais tempo fora do que em casa,
dado que as crianças não moram com os
pais, segundo as leis dos kibutz. Seu marido se matou.
Toda a família parece fadada a escapar à
média dos comportamentos. Existe uma busca interior,
um senso de desorientar-se daquela ordem que, como qualquer
ordem, torna-se repressora para os que a ela não
se adaptam. Miri passa por toda sorte de sofrimentos
e incita aquela sociedade a experimentar os seus próprios
limites. O menino Dvir quase rouba a cena, fato que
protagoniza com sensibilidade o drama principal: abandonar
ou não a mãe, que está fadada à
autodestruição. O fim da mãe parece
metaforizar o fim inexorável das possibilidades
de sustentação daquela comuna. Dvir segue
seu caminho, expresso no nome. Miri é quem vem
externar o contrapeso do sucesso de um modelo. À
conta de remedinhos.
Baseado no romance “Misto-quente” (1982),
de Charles Bukowski, “Pão com mortadela”
(2007) consiste em uma razoável versão,
para o teatro, do universo ficcional farsesco do autor
germano-americano. A história perpassa, tanto
no texto literário como na peça, a fundação
de Henry Chinaski, conhecido alter-ego de Bukowski,
como escritor, a partir de suas traumáticas experiências
de descoberta do mundo. A peça narra, com ótimos
recursos de direção – em que se
valorizam os aspectos e personagens teoricamente secundários
da trama original –, a formação
do senso de não-pertencimento à sociedade
que vai acompanhar Chinaski e todos os narradores bukowskianos
como traço irreversível de desajuste perante
o coletivo. O pano de fundo descortinado é o
de uma sociedade capitalista pretensamente democrática,
mas que não deixa opção para o
indivíduo que mija fora do penico – para
usarmos uma expressão da idade abordada. Na peça,
particularmente, sobressai o Hank da primeira infância,
atarantado com os valores mesquinhos vigentes em seu
derredor. O roteiro vacila ao tentar justificar o comportamento
agressivo de Chinaski, buscando meio que “perdoar”
as (des)razões de um protagonista construído
para ser aquele que despreza tudo, desde pequeno, até
se tornar o “cara durão” da fase
adulta. A perplexidade, bem ressaltada na peça
dirigida por João Fonseca, destoa quando combinada
com choro e hesitação, posto que a descoberta
não demora: “A Terra inteira não
era nada além de bocas e cus engolindo e cagando
e fodendo” (Bukowski, Charles. “Misto-quente”.
Porto Alegre: L&PM, 2006. p. 183.)
Em “Pão com mortadela”, portanto,
evidenciam-se outra vez os distúrbios que o viver
em sociedade podem causar ao indivíduo. A reação
de Chinaski é que é ímpar: beber,
bater, escrever. Não há, no caso bukowskiano,
uma mera aceitação da ordem para uma violentação
de si. A violência se externaliza, quer em vômito,
quer em socos – ou contos.
Por último bonde, o do “mocinho da Vila”,
conforme ouvimos no samba antológico de Wilson
Baptista – este, por sinal, muito maltratado pela
ótica irregular de Ricardo van Steen, diretor
do musical em película “Noel – Poeta
da Vila” (Brasil, 2006). Noel Rosa é um
baita personagem, interpretado com desenvoltura pelo
ator Rafael Raposo, à vontade no papel de um
ícone da transformação da música
brasileira no que ela é hoje. Noel foge à
regra. De origem classe-média, enviesa o olhar
para uma gente que é sua. Bebe de fontes que
são suas contemporâneas – quase todas
mal trabalhadas no filme, com destaque para o terrível
Mário Lago que não sabe falar e para o
Cartola bombadão, sem desconhecer o imperdoável
silêncio sobre Vadico, historicamente o mais constante
parceiro do compositor vilesco. Noel fuma suas influências,
que vão da valsa e moda européias ao samba
maxixado que se fazia no Estácio, e as conjuga
à própria vida, fazendo da arte o seu
motivo de respiro. O filme escamoteia os constantes
sufocos financeiros que o compositor, que tanto escarnecia
de seus algozes muquiranas, enfrentou.
De todo, nos resta um Noel Rosa que graceja com verdade
seus males e risos na telona, num registro fílmico
que, defeitos à parte, serve para marcar o momento
de afirmação – ou transição?
– por que passa o samba, comumente um trajeto
para inadaptados e que hoje, bem... O mundo em tom certinho
ou conformado de grande parte dos sambistas do sucesso-panela
de agora decerto há de ser, logo logo, altercado
por alguns folgados, assim creiamos.
Brasil, 2007. Pois então. Passamos os olhos por
sobre um filme, uma peça e um filme-musical em
cartaz, cujo elo – desconsideremos este resenhista
sem padrão! – é o universo poético
criado em torno de figurinhas que, longe de fazerem
tipo, estão a sofrer por não se adaptarem
à lógica de funcionamento e aos mecanismos
de coerção que qualquer sociedade impõe
sobre pessoas cujos filtros de ver o mundo não
são os mesmos das pessoas que obedecem autômatas
a uma rotina que não determinaram para si mesmas.
O certo é que o desajuste lírico promovido
por personas como Miri, Henry Chinaski e Noel Rosa costuma
resultar em obras importantes e inventários do
sofrer que custa a convivência em um meio austero
à sensibilidade.
Gustavo Dumas é escritor e revisor. Publicou, assinando com o heterônimo de Zeh Gustavo, os livros de poesias "A Perspectiva do Quase" (Arte Paubrasil, 2008) e "Idade do Zero" (Escrituras, 2005).
Contato: zehgustavo@yahoo.com.br
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