Presença do Brasil na literatura angolana
Por Jonuel Gonçalves
No inicio dos anos sessenta, o ator Raul Cortez que
tinha estado em Angola, entregou-me o primeiro livro
do romancista angolano Luandino Vieira (A cidade e a
infância) com dedicatória do autor para
Jorge Amado e pediu-me que o fizesse chegar ao escritor
baiano. Ano passado, cerca de quatro décadas
depois, eu mesmo trouxe de Angola três livros
do poeta angolano Carlos Sergio Ferreira para oferecer
a Ferreira Gullar.
As dedicatórias eram quase iguais, mencionando
influências desses dois escritores brasileiros
na obra dos dois angolanos e traduzindo continuidade
histórica entre aquelas duas datas.
A viagem de Raul Cortez a Angola deu-se quando ele integrava
os Jograis de São Paulo, que ganhou audiência
até em rádios angolanas dos anos 50 e
começo de 60 e inspirou a criação
em Luanda dos Jograis do Liceu, composto por estudantes
secundaristas angolanos, com os quais eu, também
secundarista na época, tinha fortes relações
de amizade.
Os contatos intelectuais Brasil-Angola vêm pelo
menos do século XIX, como testemunha a imprensa
angolana da época, longamente citada na dissertação
de mestrado e tese de doutorado do Professor Marcelo
Bittencourt, da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Mas foi após a segunda guerra mundial que ganharam
caráter contínuo apesar da informalidade.
O livro Cartas D’Africa de Salim Miguel (Topbooks,
Rio, 2005) tornou publica a troca de correspondência
de 1947 a 1960, entre escritores angolanos e a redação
da revista Sul de Florianópolis, que publicou
vários textos deles, fazendo da Sul a única
janela para o mundo de que dispunham, numa fase de grande
repressão contra o movimento pela independência
angolana.
Essa correspondência e os trabalhos publicados
na revista revelam uma tendência com três
aspectos principais naqueles anos:
- a grande procura de livros, jornais e revistas do
Brasil em Angola. Legalmente chegavam lá semanários
como O Cruzeiro e livros de diversos escritores brasileiros
reeditados em Portugal. Ilegalmente, sobretudo com apoio
do grupo de Florianópolis, entrava literatura
politicamente motivada ou de crítica social,
incluindo traduções de autores de outras
línguas;
- a influência de autores brasileiros na produção
poética e contista angolana, com relevo para
Jorge Amado na prosa, Manuel Bandeira e Solano Trindade
na poesia e todo o grupo da Sul em ambos;
- a publicação em Angola de constantes
referências a autores brasileiros, em suplementos
literários locais ou mesmo – como foi o
caso de Lygia Fagundes Telles – edição
em coleções como a Imbondeiro da cidade
de Lubango, no sul angolano.
As autoridades coloniais portuguesas procuraram inserir-se
nesta tendência, promovendo a difusão de
livros como O Mundo que o Português Criou de Gilberto
Freyre, que defendia o chamado luso-tropicalismo, fortemente
combatido pela intelectualidade angolana. Este choque
esteve durante algum tempo no centro do debate ideológico
e apareceu com intensidade na introdução
do Mário de Andrade angolano à primeira
antologia de poesia negra de expressão portuguesa,
onde Solano Trindade representava o Brasil e que, apesar
do título, incluía o poeta branco angolano
Antonio Jacinto, um dos correspondentes da Sul.
O passo seguinte do regime colonial foi acentuar a censura,
no quadro da repressão política que provocou
a guerra pela Independência de Angola, com a prisão,
exílio ou clandestinidade para quase todos os
escritores do país.
Pouco depois do golpe de abril de 1964, por influencia
do regime português da época, alguns angolanos
que viviam no Brasil foram presos e entre eles estava
um nome – Costa Andrade – já firmado
nas letras angolanas, inclusive com colaboração
na prestigiada Presence Africaine de Paris. Estas prisões
redundaram num desastre para as relações
com África, que tinham beneficiado de importantes
estímulos nos dois governos anteriores.
No período de Jânio Quadros, quando teve
inicio a luta armada pela independência, o Itamaraty
enviou a Angola uma delegação, da qual
foi figura destacada o então secretario de embaixada
Alberto da Costa e Silva, mais tarde embaixador, hoje
membro da Academia e um dos principais especialistas
em língua portuguesa de História da África.
João Goulart prosseguiu a mesma linha de apoio
às auto-determinações africanas,
irritando Lisboa que viu no golpe de 64 uma oportunidade
para recuperar o apoio brasileiro na ONU.
O governo militar deu-se conta do erro monumental e
procurou remediar a situação, mas suas
iniciativas de reaproximação esbarraram
na desconfiança africana, para a qual muito contribuiu
o encontro de intelectuais brasileiros e das então
colônias portuguesas, em vários pontos
do exílio.
Um desses pontos foi Argel, mas incluiu também
algumas capitais européias, onde conhecimentos,
amizades e contatos foram estabelecidos, não
apenas em literatura mas em outras áreas que
implicavam edição, como pedagogia e sociologia.
Ainda assim, em 1965 foi publicado no Rio de Janeiro
pela editora Civilização Brasileira o
primeiro romance do angolano Manuel Lima (As Sementes
da Liberdade), considerado terrorista pelo colonialismo
português.
Dentro de Angola mesmo, manteve-se a distribuição
das edições portuguesas de literatura
brasileira, existindo também uma livraria especificamente
brasileira e aumentando de forma acentuada a influencia
da crônica esportiva do Brasil, tanto escrita
quanto radiofônica.
De modo geral, foi um período sem grandes fatos
marcantes. Sua importância residiu nos contatos
e amizades que, a partir das independências africanas
dos anos 1974/75, proporcionaram a ida de muitos exilados
brasileiros, que se encontravam na Europa, para esses
países.
Em simultâneo com esse processo, o governo militar
– que no caso de Angola foi o primeiro a reconhecer
a independência em 11 de novembro de 1975 –
lançou nova ofensiva de aproximação,
que incluía aspectos políticos, econômicos
e culturais, neste caso aproveitados até por
setores de esquerda.
Assim, o então diretor da cinemateca do MAM do
Rio de Janeiro, Cosme Alves Neto, organizou algumas
mostras de cinema brasileiro em Luanda e importantes
delegações musicais e de escritores estiveram
na capital angolana, incluindo nomes de prestigio como
João Ubaldo Ribeiro e Chico Buarque (integrados
em delegações numerosas), Jorge Amado
(em companhia da esposa, Zélia Gattai) ou Martinho
da Vila.
Em Angola a atividade literária sempre teve ligações
ao cinema. Por exemplo, já antes da guerra pela
independência, a Sociedade Cultural e o Cine-Clube
de Luanda eram tão próximos que a polícia
portuguesa fechou ambos. Depois da independência,
o escritor Luandino Vieira (que teve textos publicados
na Sul e de quem a Companhia das Letras reeditou em
2006 Luuanda) foi um dos diretores do instituto angolano
de cinema e, entre este e o Instituto do Livro (IALD),
sempre existiram laços.
Tal ligação também existiu com
a música. Por exemplo, Rui Mingas adaptou à
musica poemas de Viriato da Cruz (outro correspondente
da Sul) e Manuel Rui (autor de Quem me Dera ser Onda,
editado no Brasil pela Gryphus) compôs letras
para o mesmo Mingas. Por todos esses motivos, as iniciativas
culturais do Brasil no pós-independência
de Angola, mesmo as não literárias, despertavam
sempre grande interesse entre os escritores.
Por outro lado, no final da década de 70 e começo
de 80, assistiu-se a viagens cada vez mais freqüentes
de intelectuais de Angola ao Brasil. Por exemplo, Pepetela,
que teria vários de seus livros com edições
brasileiras, tornou-se assíduo e, na volta, muitos
dos viajantes levavam impressões motivadoras
de debates em círculos intelectuais locais. Dois
deles eram constantes: as características do
racismo existente no Brasil e o movimento pela democratização.
O primeiro não era exatamente uma surpresa, mas
permitiu conhecer melhor em Angola as suas características.
O segundo suscitou grande interesse em setores que se
batiam pela própria democratização
angolana. A revista Isto É distribuída
pela Embaixada do Brasil em vários ministérios,
circulava entre funcionários médios e
superiores, interessados nas reportagens sobre o tema.
A partir de final dos anos setenta, as novelas da TV
Globo passaram a fazer parte do cotidiano das cidades
de Angola e rapidamente assumiram liderança da
audiência, fenômeno que se verifica até
hoje tanto na programação da televisão
local como nos canais por parabólica e cabo.
O aumento do numero de estudantes angolanos no Brasil,
a partir de finais dos anos 80 mas com maior incidência
nos 90, constituiu elemento importante nas relações
literárias entre os dois lados do Atlântico
Sul, acompanhando dois outros fatores:
- surgimento de novos escritores angolanos, um dos quais,
José Eduardo Agualusa construiu mesmo personagens
ou situações brasileiras em seus livros
que, em geral, têm sido publicados também
no Brasil. Um deles, Nação Crioula (Gryphus,
Rio, 1998) foi objeto de dois ensaios no livro Portos
Flutuantes, organizado por Benjamin Abdala e Marli Scarpelli
(Ateliê, São Paulo, 2002);
- aumento do numero de trabalhos acadêmicos brasileiros
sobre literatura angolana, incluindo pesquisas de campo
por mestrandos e doutorandos, ou livros e ensaios de
professoras como Rita Chaves e Tânia Macedo (São
Paulo) Carmen Secco e Laura Padilha (Rio de Janeiro).
Estas três últimas foram convidadas em
2006 pelo ministério angolano da Cultura, para
fazer parte do grupo de elaboração da
História da Literatura Angolana.
Trata-se de um projeto de grande vulto, cuja conclusão
está prevista para 2012 e que teve inicio após
a forte polêmica suscitada pela coleção
Biblioteca da Literatura Angolana, editada em Luanda
pela Maianga Produções, propriedade de
brasileiros e com patrocínio da empresa Odebrecht,
sediada em Salvador (BA).
Fazem parte da coleção vinte e seis autores,
selecionados por José Mena Abrantes, intelectual
angolano branco e assessor do Presidente da Republica,
José Eduardo dos Santos. Um grande número
ficou, portanto, fora da seleção e alguns
deles acusaram Mena Abrantes de ter escolhido poucos
negros, privilegiando escritores brancos e mestiços,
acusação que ele negou com veemência.
Durante as trocas de argumentos na mídia, os
brasileiros envolvidos no projeto foram também
alvo de fortes críticas.
A coleção foi publicada, agrupando os
vinte e seis autores em vinte e quatro volumes. O debate
que a envolveu é significativo num ponto: desde
o começo, a literatura angolana teve nas relações
raciais uma de suas temáticas mais presentes;
agora essa temática aparece nas relações
entre escritores.
A iniciativa do ministério da Cultura surgiu
em seguida e não será uma seleção
mas um trabalho histórico geral. A responsabilidade
da redação fica com um coletivo, compreendendo
angolanos, portugueses e as três brasileiras citadas.
A verdade é que desde o começo do milênio
e mais claramente após o fim da guerra interna
em 2002, a literatura angolana ganhou maior repercussão,
com o surgimento de iniciativas editoriais nacionais
e mais publicações de seus autores além
fronteiras. Neste pormenor, o Brasil acompanha o movimento,
na medida em que escritores angolanos são regularmente
editados aqui e, aos nomes de que falamos, se acrescentou
recentemente o de Ondjaki (Bom dia, camaradas, Editora
Agir) a grande revelação literária
de Angola neste início de milênio e de
Ruy Duarte Carvalho, que publicou este ano pela Companhia
das Letras Os Papéis do Inglês.
Hoje quase já não há festival,
festa ou bienal literária brasileira sem presença
africana, no seio da qual Angola aparece sempre.
Jonuel Gonçalves é professor do Inest/UFF (Rio de Janeiro) e membro da comissão científica do mestrado na FCS/UAN (Luanda, Angola). Últimos livros publicados: “Relato de guerra extrema” e “África no mundo contemporâneo” (org.). Escreve o Blog do Jonuel
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